quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Um enorme coração

Metzker voltou a brindar os amigos com textos de rara inspiração. Este de hoje faço questão de publicar aqui no blog...

PNEUS CHIANDO NA CHUVA

@ Márcio Metzker

D. Hermínia de Águas Formosas

Estava passando de moto perto da Rodoviária debaixo da chuvinha fina e enjoada de uma manhã fria deste final de agosto. Ao parar num sinal vermelho, vi uma senhora sentada num murinho de pedra. Lenço na cabeça mal cobrindo a carapinha grisalha, era tão negra que chegava a ter reflexos azulados. Não tinha no rosto expressão de tragédia, nem de desilusão. Apenas olhava para longe com os olhos enevoados por alguma saudade indefinida. Mas estava descalça, e seus pés gretados úmidos na chuva me pareceram gelados e me encheram de compaixão.

Olhei para meus próprios pés dentro de meias esportivas de algodão e protegidos por grossas botas de couro. O sinal abriu e tive que sair, mas estacionei minha moto no pátio da Rodoviária e voltei a pé. Os pneus dos táxis chiavam no asfalto molhado. Ela estava no mesmo lugar. Me lembrava D. Hermínia, a camelô centenária de Águas Formosas. Aproximei-me devagar, encostei ao lado e perguntei se aceitaria um par de sandálias. Ela só balançou a cabeça que sim. Eu a convidei para ir comigo ao Epa, ali perto. Acompanhou-me em silêncio, mas disse que não podia entrar.

“Eu sou mendinga”, explicou. “Mas hoje a senhora é freguesa”, argumentei. Ainda assim recusou. Disse que já tinha aprontado lá dentro e os seguranças estavam de olho. “Eu panhei umas salsichas e saí mordendo”, resolveu contar, sorrindo, depois de certa hesitação. Achei que seria excessivo da minha parte oferecer pagamento pelas salsichas digeridas, só para que permitissem sua entrada.

Fui até o stand das havaianas e trouxe três modelos. Ela calçava apenas 36, e escolheu uma Ipanema branca de florzinhas azuis. Fui lá pagar, ajoelhei-me diante dela, tirei as etiquetas e presilhas e calcei seus maltratados pés. Quando me levantei, sua cara era de simples alegria. Não agradeceu com a boca, mas com o olhar. Não tirei foto com o celular, nem perguntei seu nome, sua idade, suas dores. Apenas lhe estendi a mão e saí de lá com a alma leve e o coração embrulhado para presente.

Um comentário:

  1. Hummm.. gostei! Bela atitude em meia a tantas barbaridades no mundo de hoje. Parabéns!

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